043 - Relato de uma Pessoa Cronicamente Online
A minha relação com a Internet ao longo das décadas
Devido aos recentes acontecimentos de bloqueio do Twitter/X no Brasil (recentes da data de publicação desta newsletter, mas pode ler do futuro que ainda será legal), vi muita gente comentando sobre a necessidade de desapegar das redes sociais e acabei perdido num mar de recordações sobre o papel da Internet na minha vida. O resultado dessas reflexões é mais um relato com extensão maior do que o necessário que decidi compartilhar com vocês.
Em 1993, com recém-completados 10 anos, fui com minha mãe em uma excursão rodoviária de Campina Grande para Fortaleza, durante o carnaval. Lá ela encontrou uma conhecida de décadas, que estava passeando com sua filha adulta e o marido. Esse marido era engenheiro eletrônico e trabalhava com computadores na Caixa Econômica da meia-noite às seis da manhã. Por alguma razão, o Elvis criança ficou fascinado com essa possibilidade e decidiu que queria trabalhar com computadores também.
Nos anos subsequentes tive meus primeiros contatos computacionais ao fazer trabalhos do colégio na casa de um coleguinha que tinha um. Comecei a pedir de presente para meu pai, mas era muito caro, então levou alguns anos até ele efetivamente fazer isso (e foi o último presente que pedi a ele na vida, porque me senti culpado pelo custo). O pré-requisito era que eu soubesse mexer para não quebrar, de forma que fiz todos os cursos possíveis. Sim, era uma época em que existia a instituição Cursinho de Informática, ensinando a mexer no Windows, no Office, em programas de computação gráfica, a dar manutenção nos computadores e até a programar. Fiz todos.
Então em 13 de dezembro de 1996, um dia em que eu estava com algum resfriado, meio de cama, foi entregue na minha casa um Pentium 133 MHz com 16 MB de memória, 1,2 GB de disco, modem de 28800 kbps, kit multimídia Creative Sound Blaster com caixinhas de som e leitor de CD, impressora HP e um scanner que cabia uma A4! Com o Windows 95, claro.
Eu fiquei maluco, queria passar o dia todo naquele negócio. Em fevereiro de 1997 fui com minha mãe a um provedor de Internet assinar nosso primeiro plano de conexão discada. Era a Openline, pois essa era a época dos pequenos provedores (anos depois o UOL comprou e me levou junto). Levei o gabinete ao provedor, o cara instalou o Outlook (meu e-mail era elvis@openline.com.br, chique demais, o primeiro e-mail que recebi na vida foi do funcionário simpático do provedor, que se chamava Silmar, por ser filho do Silvio e da Maria, hahaha), o Internet Explorer 3, novíssimo, e um software chamado mIRC.
Os jovens não devem ter pegado essa fase, mas nessa época da conexão discada, pagava-se o preço da ligação telefônica local para conectar. Se você conectava dia de semana, cada pulso (que aparentemente durava 4 minutos) tinha um custo e horários comerciais tinham pulsos mais caros que os demais. Da meia-noite às seis da manhã era um único pulso, da mesma forma a partir das 14h do sábado até o final do domingo. Na prática, isso significava que a Internet era reservada aos finais de semana, pois umas poucas vezes que usei em outros horários significaram uma conta telefônica dobrada.
Experimentei algumas vezes o mIRC, mas sem saber muito onde entrar. Era preciso escolher um servidor e dentro de cada servidor tinha um conjunto de canais. Os servidores não se comunicavam, cada um tinha seus próprios canais. Tinha servidores gringos e alguns brasileiros, dos quais o mais movimentado era a Brasnet. Mas foi no servidor concorrente, chamado Brasilnet, que encontrei um canal chamado #Anime (a hashtag indicava que era um canal). Era maio de 1997, eu adorava Cavaleiros do Zodíaco, Yu Yu Hakusho e Dragon Ball, então um canal sobre animes só poderia me interessar.
Mas foi a recepção e o estilo do canal que fizeram a diferença, e não a temática. Na maior parte dos lugares o canal em si servia só pra um primeiro contato e as pessoas iam conversar em privado. No #Anime era muito comum a ocorrência de longas conversas em grupo. E aos poucos eu fui me encontrando ali e fazendo amizades. Tem pessoas que conheci nesses primeiros meses com as quais até hoje tenho contato. Não creio que muitas vão me ler aqui, mas se alguma fizer isso, sinalize.
No meio de 1999, provavelmente em julho, eu tinha 16 anos e era vestibulando, a fundadora do #Anime estava indo a Recife conhecer o pessoal de lá. A maioria dos usuários do canal era de Recife ou de São Paulo, que era o caso dela. Naquela época todo mundo usava nicknames e muitas vezes nem sabíamos os nomes das pessoas. O nick dela era Raposa (eu era Wolvie). Eu queria muito ir a Recife conhecê-la. A viagem levava pouco mais de 3h de ônibus de Campina, mas o último saía de lá às 17h, ficava muito corrido para ir e voltar no mesmo dia.
Então vejam como era o canal: eu joguei no chat que queria ir, uma pessoa ofereceu hospedagem na casa dela, outra disse que tinha carro e podia me buscar numa estação de metrô no sábado de manhã e me levar ao shopping, onde teria um encontro com alguns usuários de Recife (um IRContro, ou vocês pensam que o Orkontro que inventou essa terminologia?) e o cara que ia me hospedar iria pra esse encontro. Essas duas pessoas não estavam entre os meus amigos do canal, mas eu estava habituado a vê-las online e sabia mais ou menos quem eram. Minha mãe concordou com essa loucura sem conhecer ninguém, pois ela confiava muito em mim e na minha capacidade de tomar decisões corretas.
E assim eu fui e encontrei pessoalmente pela primeira vez na vida pessoas que eu conhecia apenas no digital, incluindo a mencionada criadora do canal e mais duas pessoas que até hoje acompanho no Instagram, uma das quais me chamou pra almoçar no domingo e me deixou no metrô depois. Foi corrido, mas eu nunca esquecerei esse final de semana.
Em outubro de 2001 eu fui visitar familiares em Campinas na mesma época que estava acontecendo em São Paulo a AnimeCon, que era o Anime Friends da época. Eu dessa vez já tinha 18 anos, já tinha ido outra vez a Recife ver o pessoal e era uma viagem mais tranquila. Fui à capital do estado, fiquei na casa de outra pessoa que eu não conhecia bem, revi alguns que eu tinha conhecido no ano anterior e conheci vários outros.
Infelizmente, nessa época o mIRC já começava a ficar decadente. As pessoas usavam mais o ICQ e talvez em 2003 a moda tenha virado o MSN. Eu não queria largar o #Anime. Mas tinha cada vez menos gente. Meus laços de amizade haviam sido todos construídos ali. Fui obrigado a aceitar e a usar o MSN pra manter esse contato com os mais próximos.
Voltando um pouco no tempo, no início de 2000, eu um jovem universitário, descobri que tinha outra pessoa de Campina Grande no canal. E conseguimos marcar de nos conhecer na UFCG (na época ainda era UFPB, a cisão ocorreu em 2002). Eu a apresentei a um amigo e vizinho, ela me apresentou a outro, e logo conhecemos mais alguns e formamos um grupo. E foi com esse grupo que eu aprendi a jogar RPG, que fiz um fanzine, que construí um laço que perdura até hoje, com a maioria. Enquanto eu morava em Campina, nos víamos todos os finais de semana.
Pouco depois de eu me habituar ao MSN, surgiram os Fotologs. Usei durante um tempo, até perceber que gostava mais de escrever os posts que meramente escolher ilustrações, então passei a ter um blog. Eu acho que foi aí que escolhi o nome “tocadolobo”, que me acompanha até hoje. Esse blog ficou ativo entre 2008 e 2017 (na verdade, ainda está no ar), mas nunca foi exatamente prolífico nem tinha muitos leitores. Era literalmente meia dúzia. Eu por alguma razão não me engajei em outros blogs e não considero que fiz parte da blogosfera, da qual tantos são saudosos.
Também foi a época do Orkut (no qual criamos uma comunidade pro #Anime, inclusive, para reunir os antigos frequentadores do mIRC). E então o Twitter. Acho que abri meu Facebook em 2010 e meu Instagram em 2012 (ambos ainda estão ativos com a mesma conta, embora no Facebook eu vá bem pouco), mas o Twitter eu criei em maio de 2009. As outras redes posteriores ao mIRC não mexeram tanto comigo, só o Twitter que sim.
Primeiro porque era fácil de conversar em grupo e vários amigos criaram contas nessa época. Então no início havia esse componente social muito forte. Inclusive, numa dessas conversas em grupo com pessoas da época do mIRC eu conheci aquela que muitos anos depois se tornaria minha esposa (hoje ex, mas somos amigos ainda). Ou seja, a conheci no Twitter através de uma amiga do mIRC.
Mas eu só percebi o poder do Twitter no dia da morte do Michael Jackson. Eu havia chegado do trabalho e vi na rede social a notícia e fui na sala de casa e comentei com a minha mãe e a TV só foi dar horas depois. Nessa época eu trabalhava perto de casa e tinha duas horas de almoço, então ia em casa nesse intervalo. Assim, eu acessava o Twitter após o almoço e depois à noite. Em 2010 fui para um trabalho mais distante e não conseguia mais almoçar em casa, então comecei a acessar no trabalho mesmo. Até que bloquearam.
Nesse início eu seguia pouca gente e a timeline era 100% cronológica, então eu fazia questão de ler tudo. Quando abria, a página se posicionava no último tweet que eu havia lido e eu ia lendo um a um até chegar no mais atual. Já pensou, que loucura? Sem conseguir olhar no almoço, acumulava muito para a noite e começou a se tornar inviável. E foi assim que eu comprei meu primeiro smartphone e assinei um plano de dados, saindo do pré-pago. Sim, eu comprei um smartphone e passei a pagar Internet móvel exclusivamente por causa do Twitter.
Outra coisa muito importante que devo à ferramenta é o meu posicionamento político. É claro que ele poderia ter seguido o mesmo rumo um tempo depois. Mas até as eleições de 2010 eu detestava política e votava nos candidatos do PSDB porque era o que minha mãe fazia. E no Twitter eu pude descobrir que vários amigos e outras pessoas que eu admirava tinham posicionamentos políticos fortes e voltados à esquerda, descobri justamente porque ali todo mundo se pronunciava. E pensei que todas essas pessoas não poderiam estar erradas. Comecei a ler mais, a estudar aqui e ali e a me interessar por política. Graças ao Twitter.
É claro que ao longo dos anos a rede só piorou. Bots. Timeline não mais cronológica. Propagandas. O lado social diminuiu muito, porque agora existia Whatsapp e outras opções de comunicação com as pessoas de quem eu já era amigo. Eu namorava pelo GTalk, quem lembra? Depois que migramos pro Whatsapp.
Mas apesar da deterioração, foi no Twitter em 2016 que eu pedi indicações de podcasts para ouvir, pois eu só conhecia o do Cinema em Cena, que tinha acabado. E foi assim que cheguei em podcasts que ouço até hoje, como o Xadrez Verbal e o Dragões de Garagem. Hoje meu lugar favorito da Internet, o app que mais uso, é o Telegram, onde participo de vários grupos, grande parte deles surgidos de podcasts, e voltei a fazer redes de amizades. Tou em outros grupos no Whatsapp também, com pessoas igualmente queridas. E ainda tem o Letterboxd, a melhor rede social.
Mas eu segui usando o Twitter. Muito menos do que no auge, mas todos os dias eu entrava ali de leve. Raramente tuitava nos últimos anos, mas respondia um ou outro e, especialmente, me informava. Notícias de política nacional e internacional, notícias do entretenimento, cinema, literatura, o Twitter era a minha principal fonte de tudo isso. E eu me habituei a ser uma pessoa bem informada sobre esses assuntos. Memes. Os memes sempre surgiam no Twitter antes de se espalharem em outras redes. Cansei de receber no Whatsapp ou no Instagram memes que eu havia visto dois ou três dias antes direto da fonte.
E foi assim que eu lamentei o bloqueio da rede. Não me entendam mal, eu concordo plenamente com a atitude. E considero inclusive que a longo prazo, caso permaneça bloqueado, a minha própria saúde mental vai agradecer. Mas, assim como relutei em abandonar o mIRC, eu resisti até os últimos instantes. Felizmente, o BlueSky está começando a formar uma comunidade interessante de usuários e estou ganhando o hábito de utilizar. Estou lá desde o ano passado, acho, mas mal lembrava de frequentar. Quem quiser me procurar, estou no tocadolobo.bsky.social.
Eu sobrevivi ao fim do mIRC e sobreviverei ao fim do Twitter. Torço para que não volte. São mais de 27 anos na Internet e 15 desses passei no Twitter. Estou pronto para uma nova fase da minha vida virtual.
E você, tinha o hábito de usar a antiga rede do passarinho?
Um Filme: Uma Equipe Muito Especial
Eu nunca tinha assistido a esse filme da Penny Marshall sobre a liga feminina de beisebol que aconteceu durante a II Guerra, pois os jogadores da masculina haviam se alistado. De maneira geral, alguns pontos poderiam ser mais bem trabalhados. Mas gosto das relações entre os personagens, gosto bastante das cenas de partidas e de como são tensas, embora eu não entenda absolutamente nada do esporte, e gosto da Geena Davis. Até a Madonna ajuda mais do que atrapalha, olha só! (não que eu não goste muito dela, mas é famosamente má atriz)
Leia a minha opinião completa sobre o filme no Letterboxd: Uma Equipe Muito Especial
Onde ver: Max
Outros filmes que vi este mês:
Alien: Romulus (Cinemas)
Um Livro: Good Morning, Midnight, de Lily Brooks-Dalton
Li em inglês este livro que aqui virou O Céu da Meia-noite (talvez devido ao filme) e alterna uma história de um idoso solitário em um observatório no Ártico com a da tripulação de uma nave voltando de uma missão a Júpiter. A ficção científica é apenas um pano de fundo para uma discussão sobre solidão e pessoas que não têm muitas habilidades sociais. É também uma história apocalíptica, embora este seja também só um pretexto. A autora é habilidosa com as palavras, as reflexões dos personagens são profundas e bem redigidas. Mas achei as reviravoltas previsíveis e encaixadas de um jeito que parecia querer chocar.
Leia a minha opinião completa sobre o livro no Goodreads: Good Morning, Midnight
Um Podcast: Dragões de Garagem 300
Um dos podcasts de ciência mais antigos do Brasil (e que conheci no Twitter) alcançou 300 episódios e comemorou com uma conversa sobre os bastidores da produção, revelando como os episódios são produzidos, da pauta ao lançamento.
Ouçam no seu agregador favorito ou no link abaixo:
https://dragoesdegaragem.com/podcast/episodio-300-dragoes-de-garagem-300/
Uma Newsletter: Linguagem Guilhotina #16 (V.2) - "Augusto": como escrevi meu mais recente conto publicado?, por Cristhiano Aguiar
É sempre prazeroso ler sobre o processo de escrita, e nesta edição da Linguagem Guilhotina o Cristhiano Aguiar detalha os passos que tomou ao longo da concepção e escrita de um conto sobre Augusto dos Anjos retornando como um zumbi.
Leiam:
eu tenho uma trajetória semelhante, mas eu consigo me desapegar mais fácil das coisas, eu senti que já não estava me fazendo bem, saí do facebook em 2016 e do X eu sai em dezembro de 2022. Deixei muita gente lá, tentei trazer para onde estava, mas não teve jeito, paciência.
Me encontrei no fediverse, Mastodon, Pixelfed, encontrei uma turma muito legal nas instâncias brasileiras, é muito o sentimento que tinha no mIRC, aliás, é a maior tristeza que eu tenho, o fim do IRC (eu sei que tem como usar novamente, mas falo daquela época)
Confesso que na parte que você fala do seu primeiro encontro pessoalmente com pessoas que você conheceu on-line, eu fiquei com medo de dar alguma merda! De ser algum pedófilo! Sorte que deu tudo certo, rs. Eu também devo muito ao Twitter, mas, como você, sinto que é hora de seguirmos em frente.