Eu tenho um amigo de infância cujo irmão mais velho, que também se tornou meu amigo, era leitor de quadrinhos. E quando nos conhecemos, eu tinha uns nove anos e ele uns 14, ele passou a me emprestar as X-Men dele e me viciou nessas histórias. Alguns anos depois, quando eu tinha 16 ou 17 anos e todo ano passava umas três semanas na casa da família deles, que era em João Pessoa (eu morava em Campina Grande, ambas na Paraíba), esse irmão mais velho do meu amigo me emprestou Entrevista com o Vampiro e disse que era muito bom. Nos anos subsequentes ele me emprestou O Vampiro Lestat, A Rainha dos Condenados, A História do Ladrão de Corpos, Memnoch, O Vampiro Armand e Pandora. Nessa época eu devorava livros como provavelmente jamais conseguirei de novo.
E foi nesse primeiro contato, no final dos anos 90, que eu conheci a Anne Rice. Mais velho passei a comprar os meus próprios livros, as histórias das bruxas também e hoje ela é a autora mais presente na minha estante, algo que se deve particularmente à minha paixão por seus personagens. Tenho dezoito de seus livros, sendo 14 das Crônicas Vampirescas (ela não considerava Pandora como parte, mas eu considero) e quatro das Bruxas Mayfair (são três originalmente, mas A Hora das Bruxas foi lançado em duas partes no Brasil), todos lidos pelo menos uma vez.
Não foi Rice quem inventou o vampiro galanteador e sensual em vez de um mero assassino, mas ela foi uma das figuras-chave para a popularização dessa versão mais moderna do vampirismo na ficção. Eu nunca fui particularmente fã de vampiros, apesar de gostar de Drácula, tanto livro quanto o filme do Coppola. Mas não me atrai muito a ficção apenas por ser sobre vampiros. Então o que me cativou tanto na obra da Anne Rice?
Historicidade
Eu não acho que Rice fosse uma grande estilista da prosa. De forma alguma. Mas seu grande trunfo reside no olhar para o passado. Quando ela contava histórias de outras épocas, de civilizações passadas, o fazia de maneira tão cativante que parecia nos levar em uma viagem para aquele tempo.
Ela sempre envelopava essas viagens ao passado na forma de algum personagem narrando sua história. Às vezes isso leva o livro quase todo, como Louis contando sua vida em Nova Orleans para o entrevistador na São Francisco dos anos 70. Nesses casos quase esquecemos que há uma camada narrativa exterior. Mas há outras ocasiões em que a história ocupa apenas um pedaço de um livro, e essas são mais orgânicas dentro do universo ficcional, como quando descobrimos a história da origem dos vampiros no Egito Antigo ou quando aprendemos os detalhes de cada geração das Bruxas Mayfair.
Me encanta tanto a habilidade da autora de inventar essas histórias do passado com riqueza de detalhes, que até mesmo em seus dois últimos livros de vampiros, quando conhecemos a história da Atlântida, eu consegui me deixar levar e apreciar, embora friamente entenda que tem alguns detalhes meio ridículos na trama.
Personagens
A vantagem da imortalidade para um personagem é que o autor pode enriquecer sua história quase que indefinidamente, acrescentando camadas e mais camadas de complexidade. E Rice fazia isso muito bem, especialmente com Lestat, claro. Este é o grande personagem de sua carreira, e ao longo das décadas ela detalhou tantos acontecimentos de sua longeva vida que é difícil não enxergá-lo como uma figura quase real. E tudo é coerente em sua trajetória, até mesmo o contraste entre os eventos de Entrevista com o Vampiro narrados por Louis e os mesmos fatos contados por ele em O Vampiro Lestat.
Há alguns poucos personagens que não tiveram a mesma sorte e sofreram alterações não necessariamente explicadas nas páginas das obras. Mas em cada obra isolada eles permanecem interessantes. Aliás, ela também era habilidosa ao elaborar vozes próprias aos personagens, especialmente nos livros com alternância de pontos de vista.
Sua galeria de personagens fascinantes é tão vasta que meu senso me impede de detalhar todos os que assim considero. Citarei apenas Marius de Romanus, pois é o meu favorito entre eles. O interessante do personagem é que vamos conhecendo a vida de Marius aos poucos. Sabemos um resumo por Armand, depois o próprio Marius conta um trecho a Lestat, em seguida há uma fase mais longa no livro do próprio Armand e outra mais antiga por Pandora, até que enfim Sangue e Ouro se dedica mais diretamente ao príncipe de veludo vermelho. Mas não há como ler os fatos de sua vida linearmente, é preciso conhecer pelo menos quatro livros.
Um dos motivos que levam a tanto seus personagens serem tridimensionais quanto a suas narrativas históricas representarem bem os lugares onde se passam é o nível de detalhes com o qual Rice escrevia. Sim, o estilo da autora é muito descritivo e detalhado, o que pode afastar algumas pessoas. Eu considero envolvente. Mas é fato que às vezes ela exagerava e detalhava cada móvel no recinto.
Por que ler e por onde começar?
Rice escrevia romances dramáticos. Por acaso os personagens são sobrenaturais, mas as histórias são dramas, com pitadas de romance e em alguns casos aventura e até suspense. Não precisa ter receio de ler se você não gosta de terror, porque ela não costumava pegar muito pesado nesse quesito. Quer dizer, nas histórias das Bruxas um pouco mais, mas nas Crônicas Vampirescas em geral não. Há uma cena ou outra mais violenta.
Recomendo se você gosta de hot, porque ao longo dos livros ela vai ampliando a dosagem de eroticismo, com muito espaço para casais homoafetivos. O Vampiro Armand talvez seja o livro que pega mais forte nesse quesito, isso dentro desse rol que eu li, porque ela tem até uma tetralogia erótica da Bela Adormecida que lançou sob o pseudônimo A. N Roquelaure.
Eu recomendo basicamente quatro livros para quem quer começar, em duas trilhas separadas:
Entrevista com o Vampiro, O Vampiro Lestat e A Rainha dos Condenados: leiam essa trilogia inicial. Se após o terceiro você não tiver curtido muito, pode parar por aí As Crônicas Vampirescas porque do quarto livro em diante ela começa a pregar para convertidos;
A Hora das Bruxas: uma história completamente diferente, mas também centrada em Nova Orleans, que era a cidade-natal de Rice, e desta vez entrelaçada na cultura do local.
Não leia só Entrevista com o Vampiro porque não é representativo da carreira da autora. Ela estava começando e ainda desenvolvendo seu estilo. É um dos livros mais diferentes das Crônicas Vampirescas.
Mas me conta, você já leu alguma coisa da Anne Rice? Gosta?
Um Filme: Guardiões da Galáxia Vol. 3
Considerando que a Marvel não anda na sua melhor fase, eu não estava esperando muito desse filme. Mas, diferentemente dos novos personagens que andam lançando, ou das continuações com mudança de equipe criativa, Guardiões 3 é uma sequência mais do que direta dos dois anteriores, que já haviam sido muito divertidos. E agora o diretor James Gunn está livre de qualquer amarra com Thanos ou as joias do infinito e pode simplesmente fazer uma história independente.
E funcionou bem demais. É com certeza o melhor filme do MCU desde Ultimato. Tem um pouco menos de humor e mais drama neste do que nos dois primeiros, mas o roteiro de Gunn trabalha bem essa alternância. Eu mesmo me emocionei mais do que ri. Esse ar de família que a equipe ganhou é muito bem explorado pelo roteiro. Boa sorte pros realizadores do Quarteto Fantástico para montarem uma família mais legal que essa.
Leia a minha opinião completa sobre o filme no Letterboxd: Guardiões da Galáxia Vol. 3
Onde ver: Cinema
Outros filmes que vi recentemente:
007 - Um Novo Dia Para Morrer (Amazon Prime Video)
Atração Mortal (Amazon Prime Video)
Um Livro: A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón, com tradução de Marcia Ribas
Estive em Barcelona há 10 anos por apenas quatro dias e ainda assim foi o bastante para reconhecê-la nas páginas de Zafón, autor catalão que ambienta A Sombra do Vento no pós-II Guerra na capital da Catalunha. E além da cidade ser muito bem descrita no livro, este nos apresenta a uma aventura de mistério, onde o jovem Daniel tenta descobrir quem foi o escritor Julián Carax.
Apesar de fazer muito uso de personagens contando histórias do passado pros outros, tal qual a autora tema desta edição da newsletter, a obra sabe usar esse artifício para ir descortinando a trama aos poucos para o leitor. Os maiores trunfos são os personagens, carismáticos e bem desenvolvidos, e a forma como toda a história é bem amarrada.
Leia a minha opinião completa no Goodreads: A Sombra do Vento
Uma Série: Dead Ringers
Esta adaptação do filme de 1988 do David Cronenberg, que troca o gênero dos gêmeos, transforma o longa em uma minissérie de seis episódios. Sai Jeremy Irons, entra Rachel Weisz. Permanece um tom de bizarrice. As duas personagens, Beverly e Elliot, são incrivelmente complexas e perturbadas, cada uma a seu modo. A personagem interpretada por Jennifer Ehle é excelente também.
Merece todo o destaque a parte técnica. Os cenários e os figurinos são um desbunde, bem como as realistas e gráficas cenas de parto. A trilha sonora é perturbadora, não só a autoral como também a seleção das músicas, que encaixam com o tema de cada episódio.
Mas eu preciso falar de Weisz. Este pode ser o trabalho da sua vida. Eu não consigo imaginar o esforço de construir duas personalidades radicalmente distintas ao mesmo tempo, com nuances e totalmente tridimensionais, e gravar cada cena com as duas interpretando cada personagem separadamente. E são muitas. Espero que ela vença todos os prêmios, pois merece. E não é um caso Ruth e Raquel (desculpem os jovens que não pegaram essa), com uma má e outra boa. Elas oscilam pra lá e pra cá no compasso moral.
Dead Ringers (ou seu título nacional que reaproveita a tradução do filme, Gêmeas - Mórbida Semelhança) é uma série às vezes difícil de acompanhar, porque é visualmente incômoda e tem um roteiro perturbador, mas se trata de um trabalho de alta competência, com uma equipe majoritariamente feminina atrás das câmeras, capitaneada pela roteirista Alice Birch.
Onde ver: Amazon Prime Video
Um Quadrinho: Fun Home, por Alison Bechdel
Quando tinha 19 anos, Alison se declarou como lésbica para seus pais. Três semanas depois seu pai morreu atropelado e a jovem estava apenas descobrindo que ele talvez fosse gay ou bissexual. A partir dessa premissa, a quadrinista visita e revisita suas memórias de infância e adolescência, na tentativa de construir um significado para quem foi seu pai, e fazer as pazes com o fato de não ter tido uma boa relação com ele, apesar de serem semelhantes em vários aspectos.
É provável que você já tenha ouvido falar do Teste de Bechdel, que valida a representação feminina no cinema. A quadrinista Alison Bechdel desenvolveu esse teste inicialmente em sua série de tirinhas lésbicas Dykes to Watch Out For, publicadas a partir dos anos 80. Mas foi com Fun Home, a graphic novel autobiográfica sobre sua relação com o pai, que Alison se tornou famosa. A obra venceu os principais prêmios, e foram merecidos.
À parte as camadas que o texto apresenta ao fazer uso de analogias com talvez uma dezena de obras literárias do nível de Ulisses e Em Busca do Tempo Perdido, o que realmente me impressionou em Fun Home foi a estrutura da narrativa. Bechdel não apenas vai e volta no tempo, mas conta alguns acontecimentos mais de uma vez, sob perspectivas distintas, destacando detalhes diferentes da anterior, e aos poucos nós vamos montando um panorama da relação dela com o pai.
A leitura é também uma experiência dolorosa. Embora haja momentos de humor e leveza no meio, a maior parte é um mergulho numa relação complexa e que poderia ter sido muito agradável para as partes, mas que a pessoa mais velha não soube construir e apenas repelia a filha.
Recomendo muito a leitura até para quem não tem o hábito de ler quadrinhos, pois em termos de técnica não há nada demasiado complexo, que requeira experiência no estilo.
Um Podcast: Rádio Novelo Apresenta
A Rádio Novelo alcançou a fama editando o podcast jornalístico Foro de Teresina e produzindo a minissérie de true crime Praia dos Ossos, sobre o assassinato da Angela Diniz. Em novembro de 2022 eles lançaram este podcast, o Rádio Novelo Apresenta, que adota um formato similar aos grandes podcasts de storytelling americanos This American Life e Radiolab, ou seja, a equipe é rotativa e são várias reportagens sobre temas diversos.
A Branca Vianna é a apresentadora, de forma geral, e, na maior parte das vezes, introduz outras duas histórias, cada uma contada por um jornalista diferente. As histórias tendem a ser todas interessantes e a narração bem conduzida. Apesar do formato não ser inovador para quem ouve os podcasts gringos, é bem-vindo no contexto brasileiro. E a equipe da Novelo é toda muito competente. Abaixo o link do último episódio, com três histórias sobre nomear as coisas ou as pessoas:
https://radionovelo.com.br/originais/apresenta/o-que-ha-num-nome/
Uma Newsletter: Segredos em Órbita, por Vanessa Guedes
Eu conheço a Vanessa dos tempos da Cracóvia, o antigo grupo de apoiadores do AntiCast. Mas nunca fomos exatamente próximos. O que me despertou real interesse pelo trabalho dela foi o podcast Incêndio na Escrivaninha, que ela mantém (está meio em hiato) com a Ana Rüsche e o Thiago Ambrósio Lage, cujas newsletters já recomendei aqui. Mas também li contos de ficção escritos pela Vanessa e acompanho sua newsletter praticamente desde o lançamento.
É marcante ver o quanto ela evoluiu na densidade dos textos, como o da semana passada, que traz uma reflexão sobre viver como imigrante e lidar com idiomas desconhecidos sendo falados ao redor de você. Leiam que é excelente: