015 - O que você faria se não tivesse que trabalhar?
Um exercício de reflexão sobre as dificuldades de ser adulto
Essa edição surgiu de uma reflexão que eu estava fazendo, cá com meus botões. Eu considero minha vida meio corrida. Tem tantas coisas que eu gostaria de fazer e não dá tempo. E eu definitivamente deveria dormir mais. A solução perfeita seria não mais trabalhar. Mas infelizmente as contas chegam. E tem pessoas que dependem de mim financeiramente, o que é sempre um fator extra de ansiedade e, por que não, um limitador. Mas deixe-me detalhar um pouco melhor a minha situação antes de refletirmos.
Eu sou concursado em uma empresa pública há 12 anos. Há quase três estou cedido a um órgão. Meu salário é confortável, porém eu não sou estatutário, sou empregado público. Isso quer dizer que não tenho estabilidade e, dependendo das circunstâncias, posso ser demitido. Isso é relevante para explicar um ponto da minha carga horária.
Minha rotina em dias de semana envolve: trabalhar remotamente, normalmente algo entre 8h30 às 18h, com intervalo de almoço; ir à academia; e estudar para concursos, algo que faço vagarosamente e já há quatro anos, com alguns períodos no meio de ausência, e faço justamente buscando a estabilidade que mencionei há pouco. Eu moro só, então também tenho que cozinhar, manter a casa limpa, lavar roupas e todo o trabalho relacionado a cuidados domésticos. E tenho uma cachorrinha doente do aparelho digestivo, então acrescente a isso que eu também preparo a comida dela, o que costuma ocupar umas 6h de trabalho a cada quinzena, mais ou menos. Em dias de semana raramente dá tempo de fazer faxina, então nos finais de semana eu faço compras, limpo a casa, preparo comida pra cachorra, preparo comida em quantidade para mim…
Qual o tempo que restou para o meu lazer nessa conta? Não foi muito. Mas ler meus livros, ver meus filmes, isso é o que realmente eu gosto de fazer. Então quando dá eu forço um pouco a barra (leia-se: durmo menos) para ver um episódio de série ou ler meia horinha antes de dormir. Nos finais de semana tento ver uns dois filmes, sair pra encontrar algum amigo, comer algo gostoso…
E no domingo à noite eu me agarro no final de semana, sem querer deixá-lo escapar. Porque, se eu tirasse dessa lista o trabalho e o estudo pra concursos (que também é por causa de trabalho), eu teria uma vida muito confortável e dormiria melhor. Mas vamos lá: supondo que eu fosse herdeiro e não precisasse trabalhar, como eu aproveitaria meu tempo?
Em primeiro lugar, eu certamente faria mais das coisas que já faço e amo: retomaria minha abandonada jornada pela história do cinema, vendo os clássicos que estou devendo e as filmografias dos mestres; leria bem mais livros, talvez um por semana; veria mais séries, finalmente conferindo obras aclamadas que nunca vi; e definitivamente assinaria mais newsletters, já que teria tempo para lê-las.
Eu também voltaria a escrever ficção, algo que não faço há quase 16 anos (com exceção dos exercícios de um curso). Eu teria um videogame e jogaria com dedicação alguns jogos de histórias interessantes. Aprenderia a cozinhar melhor! Sim, faria cursos de culinária prática pro dia a dia (eu sou muito vagaroso na cozinha, embora goste), aprenderia a fazer pão de fermentação natural e pizza caseira, e muitas comidas gostosas.
Eu estudaria! Além da culinária, eu estudaria Literatura, talvez até fizesse uma graduação em Letras, não sei. Estudaria Astronomia, nesse caso de forma mais amadora a princípio, porque apesar de ser de Exatas eu tenho um certo medo de Física. Eu ouviria música (algo que meio que deixei de fazer, troquei pelos podcasts), aprenderia sobre compositores clássicos e saberia discernir uma melodia pelas primeiras notas. Ouviria os principais jazzistas… Tem tanta coisa legal para aprender nesse mundo. Então eu definitivamente faria muitos cursos variados.
Mas tudo isso fica no campo do abstrato, dos planos para um futuro que não sei se virá, do intangível. Porque, afinal, eu preciso trabalhar para sobreviver. Eu desenvolvi um rancor dessa obrigação por uma vida produtiva, sabe? Eu não gosto muito do meu trabalho, e torço pra que um dia uma Inteligência Artificial o faça por mim e que eu possa viver de uma renda básica universal ou algo do tipo.
E vocês, o que fazem para lidar com essa obrigação de trabalhar? O que fariam da vida se não tivessem que conviver com essa questão?
Um Filme: Oppenheimer
Eu um dia já gostei muito do Christopher Nolan. Amnésia, O Grande Truque, a trilogia do Batman (com seus problemas, mas num geral ainda acho bacana) e principalmente A Origem, que já foi um dos meus filmes favoritos. Devo dar o disclaimer de que faz vários anos que não revejo nenhum desses e nossos gostos vão mudando, então pode ser que eu gostasse menos hoje, não sei. De lá pra cá eu não desgosto de nada, mas me atrai menos do que os anteriores. Dunkirk tecnicamente incrível, história meio sem graça; Interestelar um ótimo conceito, uma solução fajuta; Tenet uma ideia genial, tem cenas muito boas, mas de maneira geral não funciona.
E enfim chegou Oppenheimer, o filme que muitas pessoas que nunca gostaram do Nolan estão elogiando. Tecnicamente ele impressiona, especialmente tudo que diz respeito ao aspecto sonoro, da criação dos sons à trilha sonora. Este, aliás, se tornou um dos pontos fortes dos filmes do Nolan, com Dunkirk saltando à minha memória. Cillian (pronuncia-se Killian) Murphy, Robert Downey Jr. e Matt Damon estão muito bem. Já as mulheres seguem sendo um problema para o diretor. A Florence Pugh até tenta, mas não consegue ultrapassar as limitações do roteiro. É um filme longo, talvez mais do que o necessário. Mas é um ótimo trabalho, sem dúvidas.
Leia a minha opinião completa sobre o filme no Letterboxd: Oppenheimer
Onde ver: Cinemas
Outros filmes que vi recentemente:
Clonaram Tyrone (Netflix)
Um Livro: História de sua Vida e Outros Contos, de Ted Chiang, com tradução de Edmundo Barreiros
Eu sou completamente apaixonado pelo filme A Chegada, dirigido pelo Denis Villeneuve e estrelado pela Amy Adams, então faz um tempo que eu queria ler o conto que serviu de base para o roteiro. Some-se a isso o fato do Ted Chiang vir sendo cada vez mais elogiado como contista e eu decidi ler História de sua Vida e Outros Contos.
Fui surpreendido por uma certa variedade temática, pois eu estava esperando bem mais puramente Ficção Científica. Mas há, por exemplo, uma fantasia envolvendo anjos. Gostei bastante da maior parte dos contos, mas o que dá título à coletânea, que é justamente a inspiração para A Chegada, empalideceu perante o filme. É legal, mas as soluções propostas pelo roteiro do longa são mais bem trabalhadas e, claro, ver a linguagem dos heptápodes, ouvir seus sons, certamente ajuda na imersão. Mas para quem gosta de contos, recomendo muito a obra de Chiang.
Leia minha opinião completa no Goodreads: História de sua Vida e Outros Contos
Uma Série: The Witcher - 3ª Temporada
Apesar de irregular no que diz respeito aos roteiros, a série The Witcher tem uma premissa tão bem construída que eu continuo assistindo. A junção de Geralt, Yennefer e Ciri já se tornou o bastante para cativar a minha atenção. Essa nova temporada trouxe momentos muito bons, como um baile e a grande batalha posterior a ele. Também teve dificuldades na adaptação de momentos mais complicados dos livros (pelo que eu soube), como um episódio quase inteiro num deserto, cansativo.
A maior falha da série, entretanto, é a dificuldade de explicar o contexto político de tantos reinos e raças. Entra temporada e sai temporada e não fica claro quem é tretado com quem, qual a distância dos territórios, o tamanho, etc. Deveriam ter usado o auxílio visual de um mapa para explicar em vários momentos. Apesar disso, eu continuo achando interessante até certo ponto. Resta ver como será a substituição do Henry Cavill.
Onde ver: Netflix
Um Podcast: All About Agatha
Há alguns anos, quando descobri este podcast estadunidense sobre a Agatha Christie, tinha cerca de 100 episódios lançados. Hoje são quase 250. Kemper Donovan e Catherine Brobeck (que infelizmente faleceu no final de 2021) criaram o podcast com o objetivo de discutir, avaliar e dar notas para os 66 romances policiais escritos pela Dama do Crime. Os livros recebem notas de 1 a 10 para Mecânicas do Plot, Credibilidade do Plot, Personagens Recorrentes (como Poirot, Hastings, o Coronel Race, Miss Marple, etc.), Personagens Específicos do Livro e Cenário e Tom. E deduzem pontos por aspectos que envelheceram mal, como antissemitismo, racismo, machismo, etc. Além do livro, eles discutem superficialmente as adaptações para o cinema ou a TV. Essa nota é somada e isso forma um ranking, do melhor ao pior.
Aos poucos a dupla passou a fazer episódios sobre os contos também (mas sem dar notas, só discutindo) e foi expandindo o conteúdo para incluir entrevistas com especialistas em Christie e até mesmo com seu neto e principal controlador do espólio, Mathew Prichard (na verdade o filho dele está assumindo a frente). No ano passado o último dos 66 livros foi discutido e o podcast caiu um pouco em relevância, porque de fato as discussões sobre os livros eram os melhores episódios. Mas ainda há alguns interessantes. Recentemente Kemper gravou, por exemplo, um episódio sobre as dedicatórias de Agatha, discutindo quem são as pessoas, quem recebeu mais vezes e até levantando um ou outro mistério.
Se você gosta da Dama do Crime e compreende inglês, recomendo muito que ouça os episódios dos livros que já leu. Este das dedicatórias pode ser ouvido aqui:
Uma Newsletter: Giro Latino
Alguns jornalistas se juntaram para oferecer todo sábado de manhã essa newsletter com notícias da América Latina como um todo. Considerando que sou ouvinte do Xadrez Verbal, às vezes pulo notícias que eu já tenha ouvido no podcast, mas é um veículo muito completo, com matérias bem escritas, curiosidades e uma abordagem que não encontramos na mídia tradicional. Leia a última edição abaixo:
Esse dilema de viver pra trabalhar é terrível. Também fico sonhando com uma vida de herdeira: nela, eu poderia ir ao cinema todos os dias, viajar com mais frequência, para ver amigos distantes e conhecer lugares novos; definitivamente tentaria um mestrado ou uma outra graduação. Talvez conseguisse ir mais à praia. Mas com certeza compraria muitos livros, todos que desejasse, e passaria a eternidade ansiosa por não conseguir ler tudo, mesmo tendo todo o tempo do mundo.
Em alguma medida, já tenho vivido alguns dos meus sonhos de herdeira, porém numa condição menos glamorosa. Por falta de trabalho nos últimos meses (sou freelancer), ao menos uma vez por semana tenho ido ao cinema, caminho na praia e leio bastante, pois é o que me resta. Mas gostaria de fazer tudo isso sem a culpa de não estar ganhando dinheiro. Dilemas.
Querido Elvis, já estive no seu lugar. Meu trabalho não era concursado, mas minhas jornadas de trabalho chegavam a 10 a 12h diárias com frequencia. Hoje percebo que eu nem tinha sonhos, não sabia o que realmente gostava além de viajar nas férias, ou o que eu faria todos os dias da vida se dinheiro não importasse - na época, era tudo o que importava para mim.
A lição chegou em forma de doença, e depois de perceber que "o dia em que vou ter tempo para mim" poderia não chegar nunca, mudei muitas coisas na minha vida.
Eu tinha um pé de meia, o que me mantém hoje neste período entre carreiras, mas uma das principais mudanças foi cortar o custo de vida ao máximo - moro em um sítio e percebo que preciso de muito menos do que precisava quando oferecia a maior parte da minha energia de vida para o trabalho (e para os outros que não eu mesma).
Eu torço por uma realidade saudável para todos, eu espero mesmo que de alguma forma cada um possa trabalhar com o que dá prazer, com o que traz significado e que o dinheiro para a sobrevivência esteja garantido. E penso que só de ter mudado e buscar isso para mim já é uma forma de contribuir.
Um abraço com votos de uma nova realidade a caminho para você