Uma breve biografia
Agatha Mary Clarissa Miller nasceu em Torquay, uma cidade portuária no sudoeste da Inglaterra, no ano de 1890. Em 1914 se casou com Archibald Christie, um militar que logo foi enviado para a I Guerra. Ela mesma se envolveu na campanha, como enfermeira e depois auxiliar de farmácia, onde inclusive aprendeu sobre venenos. Em 1918 o casal enfim pôde viver junto e em 1919 tiveram sua única filha, Rosalind.
Como fã de histórias de detetive, nessa época ela já havia escrito seu primeiro livro, O Misterioso Caso de Styles, conseguindo publicá-lo em 1920. Em 1926, começando a ficar famosa e tendo recém-publicado O Assassinato de Roger Ackroyd, o primeiro livro que realmente conferiu a ela algum destaque no rol de autores de histórias de mistério, Agatha perdeu sua mãe e recebeu de Archie um pedido de divórcio, depois de descobrir que ele a estava traindo e queria se separar pra casar com outra.
E assim ela desapareceu. Largou o carro com os documentos em um lugar e sumiu por 11 dias. Tudo indica que ela queria desaparecer do mundo, que cogitou suicídio e estava à beira de um colapso nervoso. Houve menção a uma possível amnésia. Mas o incidente acabou atraindo muita atenção, com boa parte do país buscando a escritora desaparecida. Em 1928 o casal se separou e em 1930 ela voltou a se casar, com o arqueólogo Max Mallowan, vários anos mais novo que ela.
Agatha e Max viveram juntos por mais de 45 anos, até Christie falecer, em 1976. Com um marido arqueólogo e uma profissão que lhe permitia trabalhar de qualquer lugar, desde que tivesse uma máquina datilográfica, a autora passou a acompanhar o marido nas expedições pelo oriente médio, desenvolvendo uma paixão por viajar.
Christie escreveu 66 romances policiais, mais de 150 contos, cerca de 30 peças, uma autobiografia e seis romances que ela escreveu sob o pseudônimo de Mary Westmacott, e que têm pontos autobiográficos.
Seus livros venderam cerca de dois bilhões de exemplares, recebendo do Guinness o recorde de autora mais vendida de todos os tempos, embora considere-se que Shakespeare a supere, mas não havia uma contabilização na época dele, e peças não eram reproduzidas para venda e sim apresentadas.
Rosalind teve um filho, Matthew Prichard, que é até hoje o herdeiro do legado da autora e administra o espólio de Agatha junto com seus filhos.
A minha relação com os livros
Eu devo ter lido o primeiro livro da Dama do Crime aos 12 ou 13 anos, mesma época em que estava descobrindo Pedro Bandeira e começando a me interessar por leituras que não fossem quadrinhos. Um primo esqueceu na minha casa Um Destino Ignorado e eu devorei. E eis que este é um dos livros menos representativos da obra da autora, é mais um thriller que um suspense e é meio formulaico.
Mas serviu para que eu comprasse nas bancas a primeira edição de uma coleção da Editora Record. A estreia foi dupla, com Assassinato no Expresso do Oriente e Convite para um Homicídio. Pronto, eu agora tinha meus primeiros Poirot e Marple, duas obras apaixonantes e entre as melhores da carreira dela.
Ao longo dos anos fui pegando em bibliotecas, emprestado, comprando e até 2012 eu devia ter lido uns 20 a 25 livros dela. Então decidi que deveria ler tudo, e fiz uma jornada de 2013 a 2016 por toda a bibliografia de Christie, excetuando-se as peças, que são mais difíceis de achar. À época eu achava que tinha lido todos os contos, mas hoje sei que alguns me escaparam.
Mais recentemente, creio que em 2019, descobri o podcast All About Agatha, que já recomendei aqui. E refiz com eles a viagem por todos os romances e a maior parte dos contos de Christie. Sem reler, mas ouvi a discussão. E esse acontecimento só me deixou mais fã da Agatha.
Muitos reconhecem a autora como a maior escritora de romances policiais de todos os tempos. Eu, particularmente, considero os livros dela muito superiores a tudo que Conan Doyle escreveu com Sherlock Holmes. Holmes é muito indecifrável. Os elementos que ele junta para resolver os mistérios são praticamente impossíveis de serem percebidos pelo leitor. Já as obras de Christie nos convidam a pensar juntos. Claro que não conseguimos acompanhar o raciocínio de Hercule Poirot, mas às vezes conseguimos acertar o assassino.
Entretanto, apesar desse reconhecimento, pouco se fala sobre os méritos de Christie como artesã das palavras em si. Ela escrevia de forma simples, mas era extremamente habilidosa tanto em elaborar os cenários e definir o tom de suas obras, como no desenvolvimento de personagens.
Os principais personagens
Hercule Poirot é o grande personagem de Christie. Inicialmente pareado com seu amigo, o Capitão Hastings, em uma emulação fiel da dupla Holmes e Watson. Mas logo Christie abandona o amigo e segue seu próprio caminho. Poirot é um ex-policial belga conhecido por sua exímia capacidade de analisar a psique humana e de se ater aos fatos e ao uso de suas células cinzentas. Poirot aparece em mais de 30 livros e de 50 contos.
Miss Marple é uma senhora idosa do vilarejo de St. Mary Mead, capaz de solucionar os mais pérfidos crimes comparando as situações com outras que aconteceram na cidadezinha. Marple é extremamente observadora, percebendo por exemplo quando um personagem está mentindo apenas pelo seu olhar furtivo. Mas por ser uma senhora é costumeiramente menosprezada, até que resolve o mistério. Marple está em 12 livros e 20 contos.
Tommy e Tuppence são um casal que começa como espiões, numa pegada mais thriller, mas acabam resolvendo seus mistérios também, embora normalmente os livros não sejam construídos da mesma forma que os de Poirot ou Marple, com pistas e suspeitos. São suspenses mais abertos, com mais ação. Tommy é esse cara mais da ação física e Tuppence usa a cabeça. O interessante dos dois é que eles envelhecem. No primeiro livro, O Inimigo Secreto, são jovens se conhecendo. E nos últimos são idosos com filhos e netos. São os únicos personagens da autora que acompanhamos por toda a vida deles. Participam de 4 romances e uma coletânea de contos.
O Superintendente Battle é um detetive da polícia que participa de cinco livros, sendo um deles Cartas na Mesa, que conta com quatro detetives, o principal sendo Poirot, mas também Battle, Ariadne Oliver e o Coronel Race. Race, por sua vez, participa de quatro livros, sendo dois com Poirot e dois sozinho, e é um ex-espião militar. E Oliver é uma escritora de histórias de detetive que quase sempre está em obras com Poirot, aparecendo em sete romances, seis acompanhada do belga, embora em alguns destes ela seja a protagonista e ele o coadjuvante. Ela funciona em alguns casos como alter ego da própria Christie.
Também não posso esquecer do Sr. Satterthwaite, um homem observador que resolve os problemas das pessoas com a ajuda do misterioso Sr. Quin, uma figura quase mística que aparece e desaparece nos lugares mais inusitados. Satterthwaite e Quin têm uma coletânea de contos e aparecem em mais três contos juntos posteriores. E Satterthwaite ainda aparece sozinho em um livro com Poirot.
Para encerrar, Parker Pyne aparece em uma coletânea de contos e mais dois contos avulsos, sendo uma espécie de detetive do amor. Tem uma moral meio duvidosa, que engana as pessoas e cobra por isso, mas os contos divertem, de certo modo.
Vale mencionar que Agatha tem vários romances sem detetives conhecidos, um dos quais é E Não Sobrou Nenhum, seu livro mais vendido e aclamado.
Uma lista de sugestões
Bom, entre 66 romances e dúzias de coletâneas de contos, por onde começar a ler? Com base nos mais famosos, na minha preferência pessoal e no ranking do podcast All About Agatha, separei algumas sugestões:
O Misterioso Caso de Styles, 1920 (Poirot, o livro de estreia)
O Assassinato de Roger Ackroyd, 1926 (Poirot, um dos mais geniais)
Sócios no Crime, 1929 (Tommy e Tuppence, coletânea de contos)
O Misterioso Sr. Quin, 1930 (Satterthwaite e o Sr. Quin, coletânea de contos)
Os Treze Problemas, 1933 (Miss Marple, coletânea de contos)
Treze à Mesa, 1933 (Poirot, um dos clássicos)
Assassinato no Expresso do Oriente, 1934 (Poirot, um dos mais famosos)
Cartas na Mesa, 1936 (Poirot, Battle, Race e Oliver, para conhecer todos)
Morte no Nilo, 1937 (Poirot, outro dos mais clássicos)
E Não Sobrou Nenhum, 1939 (sem personagem famoso, o mais aclamado)
Os Cinco Porquinhos, 1942 (Poirot, considerado o melhor livro dela pelo All About Agatha)
A Mansão Hollow, 1946 (Poirot)
Os Trabalhos de Hércules, 1947 (Poirot, coletânea de contos)
A Casa Torta, 1949 (sem personagem famoso, chocante)
Convite para um Homicídio, 1950 (Miss Marple no auge)
A Maldição do Espelho, 1962 (outro dos melhores de Miss Marple)
Noite sem Fim, 1967 (considerado o último grande livro escrito por ela, sem personagem famoso)
Cai o Pano, 1975 (Poirot, escrito nos anos 40 e guardado pra ser o último livro do personagem)
Se quiserem só um para começar, sugiro Assassinato no Expresso do Oriente.
Mas e vocês, gostam da Agatha? Já leram muito? Quais seus livros favoritos dela?
Um Filme: Flora e Filho - Música em Família
Depois de Apenas uma Vez, Mesmo se Nada der Certo e Sing Street, o diretor John Carney acerta novamente ao entregar um filme sensível e doce, mas que lida também com angústias e dramas privados, sem deixar de ter espaço para uma dose de humor. Flora e Filho se passa em Dublin, com personagens falando no complicado sotaque local, e apresenta a difícil vida de uma jovem mãe que não sabe como se conectar com o filho adolescente e qual papel a música pode ter nessa relação.
As músicas são bonitas, inclusive numa mistura de folk com rap. As atuações ótimas e a personagem principal é fascinante, com suas qualidades e defeitos. A habilidade do diretor de usar a música como background para suas histórias é inegável. Espero que continue nesse ramo, porque desejo seguir assistindo.
Leia a minha opinião completa sobre o filme no Letterboxd: Flora e Filho - Música em Família
Onde ver: Appletv+
Outros filmes que vi recentemente:
Elementos (Disney+)
Um Livro: Um Corpo na Biblioteca, de Agatha Christie
Eu já estava querendo falar da Agatha Christie aqui na newsletter, mas aproveitei o ensejo de Um Corpo na Biblioteca ter sido escolhido como livro do mês de um clube de leitura que participo. Um Corpo na Biblioteca é uma história de Miss Marple. Não é dos melhores livros com a senhorinha, mas é uma leitura divertida de qualquer forma.
Eu me recordava dos fatos principais, mas isso não atrapalhou a releitura. O destaque do livro vai para Dolly Bantry, a sempre querida amiga de Marple. E, claro, para a forma com que a investigadora amadora percebe as nuances nas pessoas.
Leia a minha opinião completa no Goodreads: Um Corpo na Biblioteca
Uma Série: Cangaço Novo
Inspirada numa história real de assaltantes que foram chamados de “novo cangaço” no interior do Nordeste, Cangaço Novo é uma produção de alta qualidade técnica do audiovisual nacional. A série conta a história de três irmãos que são filhos de uma figura lendária na cidade fictícia de Cratará. Quando o pai deles é assassinado, a tia manda Ubaldo, o filho mais velho, para São Paulo. E agora muitos anos depois ele está de volta e descobre que tem duas irmãs, Dinorah e Dilvânia, e que sua cidade vive à mercê do coronelismo político.
Os principais destaques são: a atuação de Alice Carvalho como Dinorah, a personagem mais interessante da série; o trabalho de cenários, de figurino, objetos de decoração, que constroem uma realidade dura e infelizmente realista; e a fotografia, a montagem e a direção, que não devem nada à Hollywood, construindo cenas memoráveis, das quais destaco em particular uma envolvendo a música Espumas ao Vento. Há uma certa inspiração em Breaking Bad, talvez, ao apresentar uma dura realidade que força as pessoas boas a se tornarem más. E o próprio estilo geral tem um pouco a mesma vibe. Tem algumas coisas no roteiro que poderiam ser mais bem trabalhadas, mas de maneira geral a série funciona muito bem.
Onde ver: Amazon Prime Video
Um Podcast: Imaginary Worlds
O estadunidense Eric Molinsky conduz há vários anos este podcast sobre Ficção Científica, Fantasia, especulação de maneira geral. Os episódios costumam abordar pequenos temas, como os cenários imaginativos das animações do Hayao Miyazaki, trilhas sonoras de séries de Sci-Fi, a representação da Morte na ficção ou o Metaverso através do livro Snow Crash, que cunhou o termo.
Os episódios tendem a durar de 30 a 40 minutos apenas, então se você ouve em inglês, recomendo que dê uma chance. O mais recente foi sobre a criação de efeitos sonoros para o cinema:
https://www.imaginaryworldspodcast.org/episodes/making-the-sounds-of-make-believe
Uma Newsletter: Yellow Letter, por Rafaela Mota Lemos
A Yellow Letter me foi recomendada um tempo atrás pela Leticia Dáquer, do podcast Pistolando. É uma newsletter portuguesa sobre o cotidiano, sobre a Rafaela tirar sua carteira de motorista depois dos 30, com dicas de séries e livros, etc. A news estava parada há um bom tempo, mas agora está de volta, reiniciando no Substack:
Caríssimo, muito obrigada pela sugestão. Acabei de chegar ao Substack e já estou a ser recebida com tapete vermelho. Isto é muita honra! (Grande Letícia <3)
Quanto a este teu texto, muito obrigada por nos proporcionares uma excelente introdução ao mundo da Agatha Christie. Nunca fui muito ligada, mas reconheço-lhe todo o mérito.
Um abraço e até já
Excelente texto sobre a biografia de Agatha Christie! Compartilho da mesma opinião sobre Holmes vs. Poirot. O Sherlock quase sempre parece solucionar os casos por mágica ou dom divino, enquanto com o Poirot podemos acompanhar sua perspicácia e até formular nossas próprias teorias, chegando ao ponto de acertar algumas. O mesmo acontece com a Miss Marple.
Os livros da Agatha sempre serão meu "lugar seguro", meu "comfort reading", para distrair a mente com estilo. Sim, desvendar assassinatos são comfort reading. XD
Faltou apenas uma menção à querida Miss Lemon, a secretária do nosso amado Poirot.