O obituário abaixo contém algumas inferências da minha parte, podemos considerá-lo majoritariamente verdadeiro, mas com alguns complementos e ajustes para evitar buracos e imprecisões.
Parte 1: Campina Grande, PB
Josemar Rodrigues da Silva nasceu em 31 de julho de 1941 em Campina Grande, na Paraíba, filho de Sebastião e Severina Rodrigues da Silva e terceiro dos oito filhos do casal que chegaram à idade adulta. Sua família era simples, agricultores e pequenos comerciantes.
Desde muito jovem, Josemar sabia que era um estranho no ninho e assim que conseguiu um emprego saiu da casa dos pais para nunca mais voltar, inclusive mal conhecendo seus irmãos mais novos.
Um dos motivos que o levavam a ser estranho em casa era que ele só gostava de estudar. E como logo precisou se sustentar, transformou os estudos em sua arma. Aos 18 anos e tendo concluído só o que hoje seria o Ensino Fundamental, passou a ser professor de português para vestibulandos no Cursinho Campinense, cujo proprietário era Ney Suassuna, que muitos anos no futuro se tornaria senador pela Paraíba.
Entre anos dando aula e trabalhando em escritório, Josemar resolveu aprender inglês e essa foi sua grande obsessão até quase o final da vida. Só via filmes, lia livros e ouvia músicas se fossem em inglês para que estivesse constantemente refinando seus estudos.
Outra obsessão eram as mulheres. E foi em 1970 que ele conheceu Zélia e a convenceu a namorar com ele, após muita insistência. Apesar dele ser sempre muito educado e atencioso, o namoro não durou muito. E em 1971 Josemar se mudou para São Paulo, a locomotiva do país, em busca de melhores oportunidades profissionais. Saiu de sua cidade natal para nunca mais voltar.
Parte 2: São Paulo, SP
Ao chegar em São Paulo, Josemar continuou fazendo trabalhos de escritório enquanto aperfeiçoava seu inglês. Fez alguns amigos que estavam começando a dar aulas do idioma e conseguiu começar em algum lugar. Durante alguns anos manteve algum contato com sua irmã mais velha, de quem gostava, mas com o tempo se afastou dela também, rompendo em definitivo com sua família.
Em agosto de 1973, Zélia se mudou para São Paulo e foi dividir apartamento com duas irmãs. Ao sair de casa um dia, deu de cara com Josemar, que morava no prédio da frente. Ao se deparar com dificuldade de arrumar emprego e já ter 28 anos e sem perspectivas de vida, Zélia decidiu aceitar as insistências de Josemar e em 10 de dezembro de 1973 os dois se casaram, na Igreja Santa Ifigênia (hoje chamada Nossa Senhora da Conceição - Santa Ifigênia), bem no centro de São Paulo.
Naquele início de casamento moraram em um cubículo na Rua Guaianazes, ainda bem central, no apartamento que Josemar já morava antes do casamento. Alguns anos depois se mudaram para a Rua Francisca Miquelina, para um apartamento um pouco maior. Zélia descobriu que tinha dificuldades para engravidar e o casal seguiu sem filhos.
Josemar passou a alternar as aulas em escolas de inglês com aulas em empresas multinacionais, para capacitar os funcionários a lidarem com as matrizes de língua inglesa. Em paralelo, decidiu ensinar o idioma a Zélia.
Josemar era muito inteligente e com seu autodidatismo descobriu pequenas regras gramaticais que nenhuma gramática trazia mas que poderiam ser facilitadores de aprendizado. Datilografou essas regras para usar com os alunos. Como era muito paciente, se tornou um ótimo professor, amado pelos estudantes.
E ao perceber o quanto as escolas ganhavam de dinheiro, decidiu abrir a sua. Alugou uma casa na Rua Tutóia, se mudaram para a parte de cima e a escola seria embaixo. Retirou Zélia de um emprego de secretária da escola de idiomas Instituto Roosevelt e assim nascia em 1980 a Fluência Inglesa, com Josemar de professor e Zélia de secretária. Mas nenhum dos dois tinha talento para os negócios, então a escola não durou e Josemar voltou a dar aulas em outros lugares.
Em 1982 Zélia enfim engravidou e no início de 1983 nasceu Elvis, o único filho de Josemar. Com a oportunidade de um emprego em uma multinacional na zona sul de São Paulo, o casal e o filho pequeno se mudaram para a Rua Dr. João Gualberto de Oliveira, em Interlagos, em 1984. O ambiente menos central também era mais adequado para uma criança.
Nessa época, Josemar percebeu que dar aulas particulares poderia ser ainda melhor financeiramente, e foi aos poucos trocando os demais empregos por aulas direto nas casas dos alunos. Em casa era atencioso com o filho, até certo ponto. Mas era desastrado, tinha medo de lidar com criança muito pequena. Quando o garoto tinha dois anos, comprou bloquinhos silábicos e o ensinou a ler.
Josemar inicialmente era reticente em ter filhos, pois na verdade gostava mesmo era de ficar sozinho. Só se casou porque gostava muito de mulheres. Mas ele não convivia bem com outras pessoas, só em atividade profissional. Era genioso e ocasionalmente se trancava no quarto sem falar com ninguém e saindo apenas para comer por mais de um dia. E era cheio de obsessões, com higiene, com perigos na rua. Tinha muito medo de tudo.
Assim, Zélia percebeu que Josemar amava muito Elvis mas estava incutindo esses medos na cabeça do filho, criando-o dentro de uma bolha.
Com medo da reação do marido, Zélia arrumou as malas às escondidas, deixou o recado de que havia ido para a casa do irmão em Campinas e foi com Elvis em definitivo para Campina Grande, em julho de 1990. Inicialmente Josemar não queria aceitar, ligava pedindo para Zélia voltar, mandava cartas com saudades do filho e insistia no retorno. Mas como tinha medo de avião, nunca foi atrás.
E logo percebeu que seria melhor para Elvis viver em uma cidade mais tranquila, com custo de vida mais barato e passou a sustentar a criança e sua mãe à distância, revendo-os apenas no final de 1994 quando Zélia teve que ir a São Paulo assinar o encerramento de uma conta conjunta que tinham. Nunca quis que o filho fosse visitá-lo porque dizia que avião era muito perigoso.
Parte 3: Solidão e Velhice
Depois que Zélia o deixou, Josemar teve alguns outros relacionamentos. Quando estava apaixonado queria dar tudo às mulheres, ajudava financeiramente, fazia o que podia.
Manteve contato próximo com Elvis por telefone, principalmente durante a infância e a adolescência do filho, lhe dando aulas de inglês por ligação, lhe dando seu primeiro computador, o que definiria a carreira dele.
Durante os anos 1990 e a primeira metade dos 2000, Josemar ainda era um professor muito requisitado e conseguia viver com conforto financeiro e oferecer este conforto ao filho e à sua namorada da época. Porém, o professor Joe, como gostava de ser chamado, não conseguiu se adequar à era da Internet. Nunca soube mexer em computador e só teve celular por falta de opção.
E assim sua situação financeira foi ficando mais difícil. Por sorte, Elvis estava fazendo mestrado na época, com bolsa, e começou a se virar e a ajudar a mãe em casa. E quando o filho se mudou para Brasília e começou a trabalhar, avisou ao pai que não precisava mais contribuir financeiramente.
Nessa mesma época, Josemar teve câncer de próstata. Ele sempre teve uma relação ambígua com a própria saúde: ao mesmo tempo em que era preocupado, dizia que uma boa alimentação era tudo e sempre afirmava que viveria muito, que passaria dos 100 anos com saúde; por outro lado, detestava médicos e jamais fazia qualquer tipo de exame. E também escondia qualquer problema que tivesse.
Assim, uma ex-namorada que acabou se tornando amiga próxima o forçou a cuidar da próstata e fazer a cirurgia que resolveu o problema. Mas este foi um marco importante na percepção de sua própria mortalidade, tão saudável se considerava. E só decidiu contar ao filho para alertar para os cuidados com a próstata e minimizou o problema que havia tido, ainda assim.
Em meados dos anos 2010 Josemar começou a cair na rua. Já tinha mais de 70 anos e seguia trabalhando, pois não acreditava em pagar INSS para o governo. Chegava em casa machucado e sua ex-namorada, que morava perto, começou a notar e a se preocupar. Em 2015 Elvis decidiu visitar o pai mesmo com suas negativas. Ligou para ele quando já estava em São Paulo e marcaram um encontro. Josemar estava corcunda depois de algumas quedas, parecia que poderia cair a qualquer momento, mas era evasivo a qualquer sugestão de ir ao médico buscar tratamento.
Por volta dessa época, a amiga de Josemar o chamou para morar num quarto separado de sua casa, pagando aluguel como ele fazia no lugar anterior. Mas assim ela poderia monitorá-lo de perto. Em 2018 ela resolveu avisar o filho de que seu pai estava mal de saúde e que ela estava muito assustada com ele caindo pela rua e estava começando a se esquecer das coisas.
Assim, Elvis investigou e descobriu que, como Josemar já tinha 77 anos, ele conseguiria se aposentar por idade no INSS, pois antes de ser autônomo teve carteira assinada por mais de 15 anos. Assim, Josemar se aposentou e efetivamente deixou de trabalhar depois de cerca de 60 anos na ativa. E foi levado ao posto de saúde e descobriu que todas as quedas se deviam ao Mal de Parkinson.
Com alguma medicação, melhorou um pouco. Mas jamais foi o mesmo. Abandonou completamente suas compulsões de higiene e medo, largou os estudos e passou a dormir e ouvir rádio o dia inteiro. Elvis o visitou algumas vezes nos anos que se seguiram.
Em setembro de 2023 ele precisou ser levado ao hospital com dificuldade de respirar e ficou internado por quase um mês, com pneumonia e tuberculose. Como ele precisava de cuidados integrais, sua amiga não tinha mais como ficar com ele, já que tinha filho adolescente e seu salão de beleza. Então o professor foi levado para uma casa de repouso. Em 23 de outubro Elvis conseguiu visitá-lo no lugar, o encontrou muito magro e abatido depois da internação, mas parecia satisfeito.
Então, em 1º de novembro no final da tarde, Josemar parou de respirar, aos 82 anos. Foi sepultado na manhã do dia três no Cemitério Campo Grande, em São Paulo, na presença de seu filho, sua amiga e a família dela e alguns ex-alunos e familiares que nutriam um carinho especial por ele.
Josemar certamente tinha muitos transtornos psicológicos, provavelmente o obsessivo-compulsivo e talvez depressão nos anos finais de sua vida. Nunca teve muitas posses, mas sempre foi generoso com quem gostava e caridoso com pessoas em necessidade. O passar dos anos e a situação da vida acabaram dificultando a existência de uma relação afetuosa com seu único filho, mas este nutre profunda gratidão pelo que o pai fez por ele.
Deixa ex-esposa, filho, ex-namoradas, quatro irmãos e vários sobrinhos que ele nunca conheceu. Foi um homem solitário e um professor excepcional.
Um aviso: breve hiato!
Daqui a duas semanas não teremos newsletter, mas na semana seguinte sim e aí serão duas semanas seguidas com edições especiais, dos meus Tops de final de ano e minha avaliação pessoal sobre 2023. Aguardo vocês em 2 de janeiro. Bom Natal e boas festas!
Um Filme: Memórias de um Amor
Assim como Na Ponta dos Dedos, que está listado mais abaixo e também vi nessa quinzena, Memórias de um Amor (Little Fish é um título tão melhor, enigmático) apresenta uma premissa levemente Sci-Fi para discutir relacionamentos. Mas aqui é bem conduzido e funciona. O filme é muito doce e coberto de sutilezas, com uma cenografia inspirada e estrelado pela Olivia Cooke, uma atriz da qual cada vez gosto mais.
Leia a minha opinião completa sobre o filme no Letterboxd: Memórias de um Amor
Onde ver: Amazon Prime Video
Outros filmes que vi esse mês:
Clube da Luta para Meninas (Amazon Prime Video)
Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes (Paramount+)
Na Ponta dos Dedos (Appletv+)
Um Livro: O Portão do Obelisco, de N.K. Jemisin com tradução de Aline Storto Pereira
Eu já havia gostado muito de A Quinta Estação, primeiro volume da trilogia da Terra Partida, da N. K. Jemisin, então me surpreendi ao gostar mais ainda de O Portão do Obelisco. Em A Quinta Estação, os pontos fortes são, claro, o grande plot twist, e o worldbuilding muito inovador, que me deixou maravilhado pela criatividade. Mas eu terminei a leitura sem me apegar tanto aos personagens ou até mesmo aos rumos da história. A maior prova é que li no ano passado e deixei pra ler a sequência só agora. E aí essa sequência consegue tanto desenvolver melhor os personagens como ampliar o background e as explicações daquele mundo e ainda oferecer uma história instigante. Pretendo já no início de 2024 concluir essa trilogia, já que agora sim fiquei empolgado.
Leia a minha opinião completa no Goodreads: O Portão do Obelisco
Uma Série: Planeta dos Abutres
Uma animação em 12 episódios sobre quatro pessoas e um robô que escaparam de uma nave espacial sob perigo e foram parar num planeta completamente selvagem. Sam era o piloto da nave e talvez saiba como trazê-la de volta, e está ao lado de Ursula, sempre observadora da vida selvagem. Kamen está isolado e à mercê das criaturas estranhas do lugar. E a esperta Azi tem a ajuda da robô Levi, que começa a se comportar de maneira estranha para um robô.
O visual é espetacular e me surpreendeu muito na criatividade para os cenários e, especialmente, os seres vivos do planeta, que não parecem apenas versões esquisitas dos nossos animais e sim criaturas completamente únicas. A trilha sonora é lindíssima, deu vontade de ficar ouvindo em sequência. Esses dois componentes se associam à atmosfera da narrativa para entregar um New Weird dos mais fascinantes.
Onde ver: HBO Max
Outra série que vi este mês:
Star Trek: Deep Space Nine, 6ª Temporada: essa sexta de DS9 foi meio irregular para mim. A guerra contra o Domínio é interessante, bem como a estrutura social deles e de outros povos envolvidos. O bom de DS9 é essa variedade de civilizações com grande presença na história, enquanto nas séries anteriores havia basicamente apenas Vulcanos, Klingons e Romulanos com mais desenvolvimento. Um pouco dos Betazóides talvez, levemente dos Ferengi. Mas nem tudo foi bem aproveitado. Desgosto particularmente do episódio em que Sisko e Dukat ficam isolados num planeta. Dukat sempre foi um personagem extremamente ambíguo e por isso mesmo era um dos meus vilões favoritos de toda Star Trek. E nesse episódio ele larga os tons de cinza e se torna mau como o Pica-Pau. E isso me desapontou profundamente. O final da temporada e a morte de determinado personagem, que eu já sabia acontecer porque a pessoa que o interpretava parece que pediu pra sair, foi bem mal conduzido, chegou a ser ridículo, embora ainda tenha tido vários elementos poéticos e interessantes no episódio. (Netflix)
Um Podcast: The Letterboxd Show
Está começando a temporada de premiações do cinema, cujo ápice costuma ser o Oscar no final de fevereiro ou início de março. E assim como no ano anterior, o podcast do Letterboxd (que é um dos melhores lugares da Internet, sério!) faz uma série especial chamada Best in Show, onde discutem as possibilidades, entrevistam envolvidos, dão notícias de tapete vermelho e apresentam um pouco dos bastidores de Hollywood.
Numa das últimas edições as apresentadoras entrevistaram a roteirista de May December, Samy Burch, e foi muito interessante saber sobre o processo dela, como chegou nesse lugar.
Ouçam no seu agregador favorito ou no link abaixo:
https://pod.link/letterboxd/episode/356a5a2efca9679414d254c48ef3db0b
Uma Newsletter: O Inventário, por Fernanda Grabauska
A Fernanda faz em sua newsletter relatos pessoais, mas escritos de forma quase poética, como crônicas do dia a dia. Nesta edição ela fala de baleias, mas também de minhocas, e bolos de cenoura. De certa forma me senti aconchegado lendo:
Desculpa ter demorado tanto a te deixar esse abraço, sinto muito pela tua perda. Bonita a homenagem que vc fez ao seu pai. ❤️
Obrigado por compartilhar. Que a vida siga com essas memórias bonitas.