042 - Concurso Público e Capitalismo
Uma discussão sobre o funcionalismo público na esteira do CNU
Já faz alguns meses que esse tema está na minha lista de potenciais assuntos para a newsletter, uma lista que costumo olhar quando ainda não sei sobre o que escrever. Mas algumas edições atrás eu decidi que esse número logo após o CNU (ou CPNU, Concurso Público Nacional Unificado) seria uma boa opção para abordar o assunto.
Eu talvez já tenha comentado um pouco sobre isso, mas eu cresci num ambiente desinteressado da política. Minha mãe escolhia seus candidatos pela eloquência, elegância e educação (sim, Collor, FHC, etc.) e não exatamente pelas propostas. Isso ajuda a explicar que antes eu compartilhava da impressão de que ser funcionário público era algo ruim, que eram todos folgados e as “repartições” (entre aspas porque é uma expressão em desuso, creio que justamente pela carga pejorativa) antros de ineficiência. Eu não pensava assim dos meus professores universitários, não sei porquê.
Quis o destino que eu viesse parar justamente em Brasília, a meca do concurso público. Aqui quem não é concursado tem parentes que são, ou pelo menos amigos. Eu vim para trabalhar em empresas privadas de desenvolvimento de software, pois aqui era um bom filão, ao menos fora de São Paulo era um dos melhores. Mas claro, as empresas tinham como clientes os órgãos e entidades públicas. E aí talvez a minha percepção tenha começado a mudar. Porque comecei a lidar com os clientes e a perceber que eram pessoas altamente capacitadas e que trabalhavam pesado.
Em questão de dois anos que eu estava trabalhando na iniciativa privada, aceitei que aquilo era muito desgastante. Havia uma pressão para cada vez o trabalho ser mais produtivo e uma insegurança de que se a empresa que me contratava perdesse a próxima licitação eu talvez fosse demitido. Trabalhar horas além do expediente ou nos finais de semana era corriqueiro e eu entendi que seria muito melhor ser funcionário público. Não porque eu não quisesse trabalhar, mas apenas para trabalhar “só” 40 horas semanais e nunca mais passar pela insegurança de ter que procurar novo emprego em um mercado cada vez mais concorrido.
Outro aspecto que colaborou foi que eu trabalhei seis meses em uma empresa e um dia cheguei cedo e o prédio estava fechado pela Polícia Federal. Era a Operação Caixa de Pandora. A empresa e o dono eram laranjas do então Governador do Distrito Federal, Arruda, em operações de desvio de dinheiro. Fiquei dois meses trabalhando sem receber e tive que correr para encontrar outra opção e só vi esse dinheiro anos depois na justiça.
E foi assim que, em 2010, eu fiz um cursinho básico para concursos públicos. Era um cursinho presencial (2010, gente). Em duas ou três noites da semana eu emendava o trabalho nas aulas das disciplinas mais comuns cobradas em concursos, como Português, Direito Administrativo e Direito Constitucional. Antes desse cursinho eu já havia feito dois ou três concursos, mas completamente no escuro. O primeiro, do TST em 2008, eu fiz porque os colegas de trabalho me convenceram. Mas eu não tinha nenhuma chance.
Depois desse cursinho comecei de fato a fazer um concurso atrás do outro, até que, em 2011, fui aprovado para a Infraero, empresa pública que me emprega até hoje. Fui convocado com o plano de, agora que eu trabalharia em horário normal, estudar cada vez mais e galgar degraus mais interessantes. Porém, meu início na Infraero foi extremamente fortuito: eu descobri que havia muito mais benefícios do que eu esperava, como um plano de saúde excelente que me permitia incluir minha mãe como dependente e uma previdência privada em que a empresa contribuiria com uma boa fatia. E também fui surpreendido por ter sido alocado numa área fim para trabalhar com geoprocessamento! Eu sairia da complicada área de desenvolvimento de software e ainda voltaria a trabalhar com o tema ao qual eu tinha me dedicado na época da graduação e do mestrado. Então abandonei por um tempo a ideia de seguir fazendo concursos e aceitei meu emprego.
Os primeiros anos foram ótimos, mas logo se acelerou o processo das concessões de aeroportos e de repente a empresa deixou de ter verbas. As negociações salariais foram piorando, o plano de saúde virou um auxílio para planos privados, e seguiu ladeira abaixo. Entre 2011 e 2019 eu fiz concursos esporádicos, quando era algo que me atraía muito. Em 2015 e 2017, especialmente, lembro de ter de fato parado e me dedicado a estudar para provas do TCU, que não à toa é considerado o ápice do concurso na área de TI, com provas extremamente difíceis.
Em 2019 eu decidi que não dava mais para adiar, pois a situação da Infraero só piorava. E não sei se todos sabem, mas há uma distinção entre servidores públicos e empregados públicos: as empresas públicas (como a Infraero e os Correios), sociedades de economia mista (como o Banco do Brasil) e algumas fundações não contratam servidores públicos (os estatutários que, a nível federal, adotam o regime da Lei 8.112/1990), mas sim empregados públicos, com carteira de trabalho assinada pela CLT tal qual na iniciativa privada. Servidores federais podem adquirir estabilidade depois de três anos, mas empregados públicos não a tem.
A estabilidade significa que não há como ser demitido, a não ser por casos realmente graves, como condenações penais e falhas funcionais extremas. E é muito importante justamente para que os servidores possam agir de maneira independente da gestão governamental e não serem demitidos por isso. Servidores servem ao Estado e não ao governo e só com essa autonomia isso é realmente possível.
Empregados públicos têm uma estabilidade presumida. Essa presunção às vezes é amparada por dispositivos legais, como Acordos Coletivos de Trabalho, mas estes são modificáveis em todas as negociações salariais. E se uma empresa pública é extinta, nada impede de todos os empregados serem demitidos. E assim eu voltei a conviver com a insegurança. É uma insegurança mais suave porque eu sabia que não era tão fácil de acontecer, mas não seria impossível.
Inicialmente cogitei sair do país, mas percebi que esses anos como funcionário público haviam me deixado à margem do mercado de tecnologia e que meu currículo não tinha mais os requisitos para nenhuma vaga da iniciativa privada. Decidi ir para a Academia. Comecei um doutorado pensando em tentar dar aula em universidades estrangeiras. Mas esse era um plano de longo prazo, e eu não consegui liberação do trabalho, então acabei percebendo que não conseguiria trabalhar e fazer o doutorado ao mesmo tempo.
Assim, em 2019, comecei a estudar mais rigidamente. Assinei um site de concursos, planejei os estudos, comecei a assistir às aulas, e assim sigo há cinco anos. Infelizmente eu não consigo me dedicar muito. Minha vida é corrida e o cansaço acumulado de anos estudando não me permite mais estudar 1h todos os dias após chegar da musculação, que já é após o trabalho. Mas vou seguindo, no ritmo que é possível e ainda sonhando com um cargo estável.
Porque eu considero que a única forma de se ter dignidade em uma sociedade capitalista é estar à margem das competições empresariais e da busca pelo lucro, ou seja, ser parte do Estado. Sou do ponto de vista de que tudo que fosse possível deveria ser estatal. Vocês não fazem ideia de quão competentes são os funcionários públicos. Eu conheço vários órgãos de perto, e aqueles que têm mais tranquilidade financeira, com orçamento para inovar e servidores bem pagos, têm um corpo técnico em sua maioria de excelência. E de extrema dedicação. Os órgãos em que nada parece funcionar direito é porque seus funcionários não recebem bem, têm carga de trabalho acumulada devido à falta de pessoal e não conseguem capacitações ou equipamentos decentes porque não há verba.
Eu já vi gente insatisfeita porque estava numa determinada área de um órgão que passava por uma fase de pouca rigidez nas atividades. E essa pessoa não sabia lidar muito bem com uma certa independência, com não ter tantas tarefas com datas para entregar. Então, em vez de usar seu tempo para conceber novas ideias, fazer propostas e tentar agregar conhecimento de maneira proativa, ela pediu demissão e foi procurar um trabalho mais rígido. Deixo claro que isso não é o padrão, hoje mesmo eu trabalho tão assoberbado de atividades que não consigo cumprir muito bem os meus prazos.
Reforço: se você deseja estar no auge da sua carreira, poder se atualizar e trabalhar em atividades complexas mas interessantes, sem ter medo de ser demitido caso não consiga cumprir um prazo (alguns são inadiáveis, mas não é o padrão), sem se preocupar com sempre ser mais produtivo, e ter aquela renda mensal segura e confiável, venha para o funcionalismo público. Precisamos de você.
O CNU veio tentar balançar o cenário e o enriquecimento de cursinhos para concursos, com uma proposta menos decoreba e um pouco mais interpretativa, seguindo (embora ainda não tão agressivamente) a mesma ideia do que o Enem fez com os vestibulares. Eu acredito que ao longo dos anos essa será uma ideia que vai vingar e ser muito bem-sucedida.
E você? É concursado? Já fez algum concurso? Tem vontade?
Um Filme: Moonage Daydream
Além de ter uma carreira musical variada e extensa, embora nem sempre tão bem-sucedida como em sua primeira década como figura pública, o David Bowie era uma das figuras mais excepcionais do meio artístico, com um desejo por estar sempre se reinventando, mesmo que isso significasse passar anos sem lançar músicas novas porque estava se dedicando a outras formas de arte. Bowie usava seu tempo livre para aprender coisas novas, como pessoas ricas deveriam fazer. E seus variados interesses acabavam orbitando a arte.
Moonage Daydream é um documentário não muito convencional que apresenta trechos de entrevistas e de shows e gravações pessoais, sem necessariamente oferecer contexto mas ainda seguindo uma lógica mais ou menos linear da carreira do artista. Há momentos icônicos e outros relativamente intimistas. Me incomodou não saber mais sobre algumas fases, mas a experiência é deliciosa ainda assim.
Leia a minha opinião completa sobre o filme no Letterboxd: Moonage Daydream
Onde ver: Amazon Prime Video ou Max
Outros filmes que vi este mês:
Alien: Covenant (Disney+)
Um Livro: Assassinato no Campo de Golfe, de Agatha Christie, com tradução de A. B. Pinheiro de Lemos
Eu tou adorando esse projeto de releitura da Dama do Crime a longo prazo. Minha experiência como leitor agora está sendo bem diferente de quando li tudo entre 2013 e 2016 ou os que já havia lido antes. Primeiro porque a gente vai amadurecendo mesmo. Segundo porque agora leio e vou ouvir a opinião do All About Agatha e depois de conhecer o podcast já saco os pequenos gatilhos das histórias da Agatha. E terceiro por estar lendo de maneira coletiva num clube de leitura.
Este terceiro livro ainda passa longe dos clássicos da carreira dela, mas já aponta o caminho para o Poirot que aprendemos a amar. Se em Styles o personagem ainda parecia em construção, aqui já está mais bem acabado. O mistério tem alguns problemas e nem todos os personagens são interessantes, mas a leitura é bem divertida, especialmente graças à parvoíce de Hastings.
Leia a minha opinião completa sobre o livro no Goodreads: Assassinato no Campo de Golfe
Uma Série: A Roda do Tempo, 1ª Temporada
Ainda quero fazer uma edição da newsletter sobre a minha relação com Fantasia e Ficção Científica. Porque é curioso, racionalmente eu gosto muito mais de FC, porém na hora de me envolver com as histórias, a Fantasia sempre parece conseguir me cativar com mais intensidade. Eu confesso que me bate uma vontade de ler essa série de livros A Roda do Tempo, mas fico me segurando porque são 14 calhamaços e não tenho tempo pra isso tudo, hahaha. Mas resolvi ver a série, com muito receio porque não vi muita gente comentando. E acabei me surpreendendo positivamente. Tem clichês, tem momentos meio apressados e mal explicados, e os atores que fazem o elenco mais jovem são fraquinhos. Porém, os dois personagens que fazem a vez de mentores são interessantes desde o princípio e aos poucos a história foi me despertando curiosidade e terminei a temporada ansioso para saber o que vai acontecer. Vou alternar com outras séries mas em breve desejo conferir a segunda.
Onde ver: Amazon Prime Video
Um Podcast: A Cast of Kings - A House of the Dragon Podcast (em inglês)
Descobri esse podcast dos EUA enquanto a segunda temporada de House of the Dragon estava sendo exibida e achei bem interessantes e elaboradas as discussões acerca de cada episódio. Com um host que não é leitor do material original mas duas participantes que são, o podcast aborda os dois níveis de compreensão da série e discute as qualidades e defeitos da adaptação.
Ouçam no seu agregador favorito ou no link abaixo:
https://www.podchaser.com/podcasts/a-cast-of-kings-a-house-of-the-25227
Uma Newsletter: Ovelha Azul - Inteligência Orgânica, por Bia Montenegro
Essa edição da newsletter da Bia alterna reflexões com comentários sobre Inteligência Artificial e Large Language Models (LLMs), como o ChatGPT. Gostei particularmente da estrutura da newsletter, mas as reflexões também nos fazem pensar.
Leiam:
Tenho vontade e ao mesmo tempo não tenho. Fui empregada publica temporária por dois anos e o ambiente era extremamente tóxico. Tive minhas primeiras crises de pânico por lá. Por outro lado, muitos conhecidos concursados tem casas próprias ou vivem de maneira menos apertada financeiramente. Pra pensar. No entanto, sigo autônoma...
gostei demais do seu relato!