No último 21 de abril (de 2025, quando estou escrevendo, vai que você está lendo vários anos no futuro) Brasília completou 65 anos de sua inauguração, algo que só foi possível devido à época, com menos fiscalização e normas para investimento público e trabalhistas. Hoje não sai um centro administrativo governamental em cinco anos, que dirá uma cidade.
Mas foi o legado de Juscelino Kubitschek para o país. Não foi sua a ideia, a mudança da capital para o centro do país era um plano antigo dos políticos e a área da capital vinha sendo definida desde o início do Século XX. Mas o Juscelino soube fazer disso o mote de sua campanha e cumpriu o prometido, aos trancos e barrancos.
Brasília é uma cidade de contrastes e, ao mesmo tempo, um lugar como nenhum outro. O Plano Piloto, que foi planejado conforme o projeto vencedor do concurso, do arquiteto Lúcio Costa, foi pensado para trazer qualidade de vida e modernidade para os funcionários públicos que viriam para a nova capital. Prédios projetados por Niemeyer, com azulejos de Athos Bulcão e paisagismo de Burle Marx, tudo construído pela Novacap, empresa pública criada para a construção e então presidida por Israel Pinheiro.
Já as pessoas que efetivamente trabalharam nas obras, os candangos, principalmente vindos do Nordeste, não tinham espaço no Plano Piloto. Foram feitos assentamentos inicialmente no que se chamava de Cidade Livre, pois era totalmente livre de impostos e fiscalização, e hoje este é o Núcleo Bandeirante. A Candangolândia, Taguatinga, o Cruzeiro, foram alguns dos outros lugares criados antes da inauguração, para abarcar esses candangos e, após a construção, os trabalhadores da área de serviços, do engraxate ao comerciante, passando pela empregada doméstica ou mesmo pelo motorista dos congressistas.
Eram as cidades satélites. Aliás, cabe aqui abrir um parênteses para destacar a confusão que envolve o conceito “Brasília”. A área que foi delimitada para o Distrito Federal é um retângulo (apelidado carinhosamente de quadradinho) e o Plano Piloto é apenas a área em forma de avião e seus arredores, um pequeno pedaço do DF. A Constituição Federal de 1988 diz que Brasília é a capital federal. A mesma lei diz que é vedada a divisão do Distrito Federal em municípios. Mas Brasília é um município? Ou não? Pro IBGE é sim, e tem área igual ao DF. Mas não existe um prefeito nem vereadores. Então legalmente não é. O Governador do DF acumula as funções de um Prefeito e de um Governador. Os Deputados são Distritais e a casa do parlamento é a Câmara Legislativa, um nome que mistura propositadamente Câmara Municipal e Assembleia Legislativa. Mas afinal, Brasília é outro nome pro DF? Pra alguns órgãos sim, como o citado IBGE, mas em geral prevalece o sentido de que Brasília é o Plano Piloto. Ainda assim, quando eu dou meu endereço, coloco Brasília, DF, e eu nunca morei no Plano.
Mas enfim, não vamos sanar essa confusão. Voltando às cidades satélites, este conceito virou pejorativo em algum momento e resolveram dividir o DF em Regiões Administrativas, com o Plano Piloto sendo uma delas e há hoje outras 34, cada uma com um administrador nomeado pelo governador e uma equipe para cuidar de certos aspectos mais básicos da RA. Uma RA mais ou menos corresponde a uma cidade satélite.
O Plano Piloto é lindo. Super arborizado, tudo bem planejadinho, extremamente lógico e que uma vez que você entende como funciona consegue chegar a qualquer lugar sem precisar aprender o caminho, mas simplesmente por entender que a quadra 314 sul fica depois da 313 e antes da 315 no sentido norte-sul e entre as 114 e 514 sul no leste-oeste. Os apartamentos são grandes e bem divididos e a qualidade de vida é alta. Ou melhor, é alta se você tiver carro. Ok, hoje há boas ciclovias cortando o Plano. Os ônibus são ok em horário comercial e raros fora dele. Metrô só na asa sul. Mas toda a setorização do local torna difícil de resolver as coisas sempre a pé.
Já eu escolhi morar em Águas Claras, que é bem menos arborizada e bonita (mas tem um bom parque) e parece mais com uma selva urbana nos moldes de São Paulo. O planejamento urbano é ineficaz e as vias não foram projetadas para o volume atual de moradores. Porém, eu estou sem carro há 2 anos e meio e tenho, a uma distância de 1 Km: 7 mercados, 6 padarias, dúzias de farmácias, restaurantes, uma estação de metrô, várias academias de ginástica e um parque. Faço tudo a pé. E ainda é mais barato do que morar no Plano, com o bônus dos prédios serem muito novos e modernos. Mas o Plano é o Plano, claro. E cada RA tem suas características, as pessoas nascidas no DF costumam ter uma relação forte com o local onde nasceram.
Mas voltando ao assunto mais geral, já que esta edição não tem um foco muito definido. Se você não conhece Brasília, por que visitar? Trarei alguns fatores:
O projeto urbanístico: não à toa o Plano Piloto foi tombado pela UNESCO, é algo único e muito diferente, que vale a pena conhecer. Os prédios residenciais, apenas para citar uma característica, têm seus pilotis abertos para circulação pública, pois é proibido no Plano Diretor da cidade cercar a área;
Restaurantes: se você gosta de turismo gastronômico, essa cidade só evolui nessa seara desde que cheguei aqui. O atendimento pode melhorar, mas a variedade cresce e a qualidade também;
Museus: o Centro Cultural Banco do Brasil é um dos mais lindos e agradáveis para visitar, mas há boas opções de mais fácil acesso e com exposições interessantes, da Caixa Cultural ao Museu da República, passando pelo Memorial JK e pelo SESI Lab;
Turismo Cívico: além da Esplanada em si como um conjunto, é possível fazer visitas guiadas em vários dos prédios de órgãos públicos, as mais famosas talvez sejam a do Congresso Nacional, que é interessante para conferir ao vivo os plenários que tanto aparecem na TV; e a do Itamaraty, um dos meus passeios favoritos da cidade, e que não sei se já fiz oito ou nove vezes. O palácio é uma obra de arte em si e repleta de outras, dos jardins de Burle Marx aos painéis de Athos Bulcão e quadros de artistas famosos, além das tapeçarias e mobília imperial;
Mas já que mencionei a Esplanada dos Ministérios, ela termina na Praça dos Três Poderes, que tem uma entradinha discreta para o Espaço Lúcio Costa, uma sala com uma maquete imensa do Plano Piloto. Mais pra cima, no início da Esplanada e ao lado do Museu da República fica a Catedral, com seus belos vitrais, uma réplica da Pietá, a cruz da primeira missa da cidade e ainda o truque acústico que você precisa ir com alguém que saiba para ver como é. Mas minha igreja favorita da cidade é o Santuário Dom Bosco, toda em azul e com o único e gigantesco lustre. Ambas as igrejas contam com arquitetura nada clássica para combinar com a cidade;
Mais alguns lugares: a Torre de TV permite que se suba até uma área intermediária e tenha uma bela vista da Esplanada e compreenda um pouco a geografia da cidade; o Pontão do Lago Sul tem uns píeres no Lago Paranoá e é um lugar bacana para ver o pôr do sol, assim como a Praça do Cruzeiro. Já que falei do pôr do sol, a cidade é famosa por um horizonte muito amplo, devido a ser bem plana e a capital de maior altitude no Brasil, então tem um entardecer muito apreciado;
Para quem se interessa pela natureza, o Plano conta com o Parque da Cidade, que é imenso, embora relativamente subutilizado. Mas mais interessante é que ao longo do Plano Piloto inteiro foram plantadas árvores floríferas com calendários alternados, de forma que seguimos um ciclo de quase sempre ter flores enfeitando a paisagem, com destaque para os ipês, que seguem do roxo ao branco, passando pelo amarelo, entre junho e setembro, e para os Flamboyants, em outubro;
Ainda sobre natureza, o DF é porta de entrada para um sem número de possibilidades envolvendo rios e cachoeiras imperdíveis. Vocês já sabem que eu amo a Chapada dos Veadeiros, mas aqui mais perto mesmo tem o Salto do Itiquira ou o Tororó. E mesmo Pirenópolis ainda é considerada parte do entorno de Brasília, embora esteja a cerca de 2h de carro. A cidade, aliás, conta com boa gastronomia e artesanato, além da variedade de trilhas e cachoeiras.
Para completar, preciso explicar o ciclo do clima na cidade. Há basicamente dois grandes períodos, de chuva e seca, mais ou menos intensa. De dezembro a fevereiro costuma chover muito, às vezes todos os dias. Já novembro, março e abril são meses de chuva mais moderada (habitualmente, porque neste ano abril tem chovido muito). Maio e outubro costumam ser meses de transição entre seca e chuva. E de junho a setembro é a seca em si. A seca costuma começar amena e ir piorando. Em junho e julho ás vezes faz um frio moderado, mas de agosto pra setembro esquenta e esquenta muito. Todas as temperaturas recorde aqui são em setembro, que é o pior mês do ano na cidade: 15% de umidade, cheiro de fumaça das queimadas, 34º todo dia… Eu recomendo a visita em maio, pois a cidade ainda está bonita das chuvas, já pode ter os primeiros ipês e não costuma chover muito nem ter temperaturas extremas.
E vocês? Conhecem Brasília? Muita gente não gosta daqui, o que eu entendo, mas qual a impressão de vocês?
Um Filme: Pecadores
Com um enredo pouco previsível, elenco afiadíssimo e um apuro visual impressionante, o roteirista e diretor Ryan Coogler (de Creed e Pantera Negra) constrói aqui uma espécie de fábula de terror, com cenas belíssimas e, principalmente, sacudindo as estruturas de Hollywood. Digo isso porque vínhamos em anos onde cada vez mais os estúdios investiam a grande verba em franquias e marcas já estabelecidas (os famosos IPs - Intellectual Properties), relegando às ideias originais o espaço semi-independente, com baixo investimento (pro padrão dos EUA, 30 milhões é um filme quase independente). E Coogler conseguiu não apenas um orçamento razoável (cerca de 90 milhões), mas lucros na bilheteria desde o primeiro final de semana e a devolução dos direitos sobre a obra pro cineasta depois de 25 anos. E o público está respondendo, a bilheteria vem há duas semanas surpreendendo os analistas. Isso pode significar um retorno de investimentos médios em obras originais. Além dos elogios que fiz no início, o filme se destaca ainda pelo uso da música, abrindo espaço para canções completas interpretadas pelos personagens, inclusive uma das cenas mais épicas do ano. Não é um filme focado em sustos, embora tenha algumas cenas gráficas.
Leia a minha opinião completa sobre o filme no Letterboxd: Pecadores
Onde ver: Cinemas
Outros filmes assistidos (ou reassistidos) recentemente:
Missão Impossível 7: Acerto de Contas Parte 1 (Paramount+)
Columbus (indisponível)
Uma Série: Uma Questão de Química
Achei o livro bem divertido, então aproveitei os últimos dias de três meses que assinei da Appletv+ para assistir à minissérie que adapta a obra. Tem muita coisa interessante na série, o cerne do livro está lá. As atuações são boas e gosto da expansão de um ou outro papel. Também é interessante a ideia de incluir personagens negros, meramente mencionados no original. Porém, alguns personagens tiveram sua essência transformada, principalmente Calvin, aqui bem mais expansivo e sociável, dando a entender que só não gosta dos colegas do trabalho. E Elizabeth também é mais comunicativa, passando bem menos a impressão de sua neurodivergência tão evidente no livro. Se você só viu a série, saiba que o livro é melhor.
Onde ver: Appletv+
Outra Série: Black Mirror - 7ª Temporada
Diferentemente de muita gente, eu não desgosto de nenhuma temporada de Black Mirror. Eu acho que os melhores episódios estão no passado, mas ainda considero que muitos dos mais recentes promovem discussões interessantes ou pelo menos partem de um bom conceito. A sétima temporada é melhor que a sexta, mais alinhada à temática original, de tecnologia e capitalismo. O episódio que menos gostei foi o que continua USS Callister, não acho que acrescente nada. Mas os outros cinco trazem minimamente conceitos criativos, meu favorito sendo Hotel Reverie que, embora no desenvolvimento não se compare a um San Junipero da vida, é tão fascinante em sua proposta que conseguiu me impactar.
Onde ver: Netflix
E um Anime: Sakamichi no Apollon
Fazia um tempo que eu não parava pra assistir a um anime seriado. Mas não pude resistir a esta indicação da minha amiga Olga, pois parecia bem o meu estilo mesmo, um pouco coming-of-age, um pouco slice-of-life. Nos anos 60, Kaoru, Sentarou e Ritsuko são três colegas de colégio que acabam se tornando amigos apaixonados por jazz. Ritsuko é filha de um dono de loja de vinis que toca contrabaixo. Ela e Sentarou são vizinhos desde criança e ele frequenta a loja pra tocar bateria numa sala reservada. E Kaoru é de origem rica e toca piano clássico, mas acaba descobrindo o jazz com seus novos amigos. São apenas 12 episódios, com três personagens bem desenvolvidos e alguns bons coadjuvantes. A obra consegue evitar os principais clichês de romances em animes e brilha em particular nas cenas musicais. A direção da animação é do grande Shinichiro Watanabe, a mente por trás de Cowboy Bebop, e talvez por isso mesmo a parte musical seja a mais interessante.
Onde ver: indisponível
Um Podcast: Data Voyagers #2 - Breaking Data
O Igor Alcantara, que também é o host do Intervalo de Confiança, lançou um podcast agora em inglês e com sua amiga Angelika Klidas. A primeira edição é mais uma apresentação, mas esta segunda explica o conceito de dado, informação, conhecimento e sabedoria, uma evolução que quem estuda a área de dados na TI já conhece, mas é explicada aqui de forma didática para pessoas de fora.
Ouçam no seu agregador favorito ou no link abaixo:
https://www.datavoyagers.net/podcast/episode/4bee9ec1/02-breaking-data
Uma Newsletter: Ovelha Azul - Como pensar futuros sem parecer um bigodudo europeu do século XIX?, por Bia Montenegro
Eu gosto muito de como a Bia reflete sobre tecnologia, capitalismo, IA e o futuro, trazendo um embasamento não tão comum de se ver por aí. Esta edição em especial me deixou pensando em como escapar da visão pessimista ou niilista sobre o nosso futuro como Humanidade.
Leiam:
Eu amo Brasília, as ruas floridas, o canto das cigarras (que vem diminuindo), o prazer de ver araras e tucanos no meio da cidade, especificidades daqui que enchem o meu coração de alegria. E o por do sol? Único e com uma incrível variação de cores ao longo da descida do sol, uma arte linda! Não conheço todos os Estados brasileiros, mas Brasília sempre será minha primeira opção para morar para meu filho viver esses detalhes no dia a dia.
Ótimo texto, parabéns!
Fui muito à Brasília porque uma das minhas melhores amigas morava aí, mas sempre que vejo pessoas comentando certas coisas da cidade - em especial os entornos com cachoeiras e algumas coisas arquitetônicas específicas-, me toco que não cheguei a visitar essa parte. Quem sabe, quero muito conhecer a chapada. Obrigada pela indicacaaaao